segunda-feira, 20 de outubro de 2014

De volta ao castelo




Vejo e revejo a foto emoldurada na parede de minha memória. O olhar recupera em alto zoom aquele tempo perdido para alguns, mas cravado no íntimo de minhas lembranças. Bons tempos aqueles em que minha escola era castelo encantado, templo indestrutível e alheio às  guerras dos meus heróis preferidos.

A professora e os alunos lançavam olhares curiosos sobre a menina pequena que se escondia no fundo da sala  com um olhar assustado que denunciava sua condição assustada  naquele novo ambiente.Olhar amedrontado, curioso, choroso tomava conta dela naquela nova estação que, por motivos diversos, ela foi obrigada a embarcar.
Fico imaginando hoje o que passava pela cabeça daqueles meninos e meninas ,já adolescentes com suas descobertas, diante daquele pedacinho de gente que chegava para estudar com eles. E a professora, a Tia Laura, olhava tão intensamente e admirada para mim que me obrigava a fugir com olhar para a janela , buscando um refúgio seguro. Ela nem imaginaria que um dia seria uma personagem a bailar em frases entrelaçadas de homenagem fisgadas da memória tímida e especialmente reconhecida pelo bem vivido. Nem eu sabia que ali seria aberto ou me apresentado, um vasto mundo de letras a decifrar, feito poema, todo bordado de entrelinhas e infinitos efeitos.
Logo Tia Laura foi tecendo o fio imenso que nos separava com carinho, palavras doces e sorriso largo. Seu olhar dizia mais que a voz, despontavam a calma que eu buscava para continuar sorrindo e fugindo dos bombardeios de brigas e discussões que me acompanhavam fora das muralhas de meu castelo.
Eu jamais  cogitaria estar nesse meio de enredos genuínos e originais de vidas em contínuo prosseguir. Sempre fui destaque em suas lições zelosas. Assim, um dia, contaria uma célula da sua história imantada no tempo. O que poderia fazer vibrar algo de obscuro num coração embevecido de agradecimentos. Logo ela tornou-se tão minha que os outros alunos reclamavam enciumados e ela, sempre repetia que amava a todos, mas a pequenininha merecia mais cuidados e isso me deixava extremamente feliz.
Na verdade, Tia Laura não sabia do bem que fazia àquela menina tão cheia de sonhos e de medos, resultantes de uma realidade dura que jamais foi revelada aos colegas nem a ela mesma, por mais que a amasse e se sentisse protegida no castelo.
Um dia , em mais uma atividade, tinha Laura distribuiu pequenas imagens, figuras e distribuiu cadernos para que contássemos uma história. Remexi as figuras até encontrar a que me despertava interesse... um castelo. Foi meu primeiro texto e lamento o tempo não ter me permitido tê-lo em mãos, mas sei que  escrevi desnuda de qualquer impedimento, como passarinho livre a criar seu caminho por entre laranjais e jardins. E a felicidade com que eu fazia aquilo hoje, resgatando, me espanta. Foi um "muito prazer" à escrita. Um amor à primeira vista para aquela menina de apenas oito anos. No final a professora boquiaberta com minha história, olhar marejando, sorriso escancarado que eu jamais havia visto. Uma face absurdamente admirada a rasgar elogios que me deixavam radiante sob protestos dos colegas que diziam que não tinha sido eu que escrevera.
Outras aulas se seguiram e mais e mais histórias foram surgindo. No ano seguinte, na metade do semestre Tia Laura mudou de escola e me vi sem a rainha do meu castelo encantado. Passei dias acamada, mergulhada numa tristeza imensa e a aversão ao castelo foi inevitável, porém logo superada devido ao carinho constante de minha mãe. Porém minhas histórias foram com Tia Laura e, em respeito a ela, minha mentalidade de menina não me permitia escrever mais no meu castelo, pois só minha rainha poderia ler e me ver voar como passarinho.
Lembro sempre dela quando leio um conto, quando escrevo...
Mal saberíamos nós que, um dia, minhas letras seriam textos em outras moradas de avivar sentimentos. E mal sabíamos também que me tornaria uma professora como ela. Talvez mais calma. Mas, com certeza, fiel ao seu modo honroso de ser, guardador de alguma referência de seriedade e prestezas. E de algo que pode nos fazer sempre seguir adiante e de cabeça erguida a olhar os plausíveis horizontes.

E eu, especialmente eu, nem sonharia que a minha Tia Laura, a rainha de meu castelo encantado, meu harém afetivo, seria a linda flor ou a relíquia a enfeitar esse meu escrito e, ainda, a grande responsável por ter me envolvido de letras e palavras nesse meu apaixonante universo que me torna passarinho por entre os campos.

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